domingo, maio 27, 2007

EU

A terra é a minha pátria, o céu o meu tecto, a liberdade a minha religião.
Provérbio cigano

terça-feira, maio 15, 2007

Passa mesmo?

Fechou a porta com todo o cuidado para que a mãe não acordasse. Hoje o trabalho deveria ter demorado mais tempo. No princípio custara-lhe muito aceitar a profissão da mãe. A mãe é uma p... . Fina, daquelas que se mantém à custa das mais novas, quase sempre ilegais e na maioria até mais novas do que ele.
À “Casa Alegre”, assim se chama o local, ele foi lá duas ou três vezes, e foram fatais. Na primeira descobriu a verdadeira profissão da mãe, na segunda descobriu rostos de homens importantes que só conhecia da televisão e na terceira vez... essa sim foi a mais fatal. Apaixonou-se. Acreditem... foi de verdade! À primeira vista! O primeiro amor! Tornou-se uma obsessão. E se as obsessões em qualquer idade são perigosas, na adolescência em que o mundo ainda é nosso, as emoções são ainda mais intensas e o perigo da queda torna-se ainda maior.
Ela, filha de um emigrante português arruinado, era a coqueluche dos clientes: Bonita, franzina, loura, tocava piano e falava francês. E era a pureza em pessoa e no nome. E não tinha achado piada nenhuma a ele. Até porque não se queria meter em complicações com a patroa. Atracção física, uma paixoneta condescendia ela. O verdadeiro amor, prometia ele. Paixão primaveril, insistia ela. Amor eterno, jurava ele.
Um dia pequeno de Inverno ela desapareceu. Da “ Casa Alegre” e da vida dele. Ele chorou-lhe a partida e ficou meses de cara às avessas com a mãe. Rebeldia de um adolescente mimado. Isto passa-lhe, ajuizou a mãe.
Passa mesmo?!
Chega à faculdade mesmo a tempo do início da primeira aula da manhã. O professor debita a matéria. Fala-se do coração. Das veias e do sangue. Dos malefícios do tabaco e do colesterol. Mas o Senhor Professor esqueceu-se das emoções. Essas sim, provocam os grandes males do coração. Essas sim aceleram o coração e originam as tais palpitações.
O sonho da faculdade já não o alimenta. Já não chega, se é que me percebem. Têm de haver mais do que este futuro projectado ao milímetro. Faltam-lhe as ditas emoções, aquelas que dão vida ao coração. Dessas, ele não as vive há muito tempo. Desde que ela se foi embora, naquele pequeno dia de Inverno. Isto passa-lhe, ajuizou a mãe.
Passa mesmo?!
Num terraço de um prédio de doze andares, sentado mesmo, mesmo à beirinha ele interroga-se: Qual é o fim da dor?
Lá em baixo, os carros e as pessoas. Formigas de várias cores que apressadas procuram o seu carreiro e o seu ninho. Qual é o fim da dor? Passa mesmo?! Já não consegue acreditar nas palavras da mãe. Afinal, depois de tantas mentiras (piedosas), ainda dá para acreditar?
Um psiquiatra “amigo” da mãe diagnosticou-lhe uma depressão e mandou-o para casa com duas caixas de comprimidos. Nunca os tomou. As emoções não se curam com químicos. Pelo menos não as suas.
Suicídio, distracção ou negligência (nenhuma protecção no terraço!). Apenas uma pergunta: Qual é o fim da dor? E as palavras da mãe. Isto passa. Passa mesmo?!



*um dos meus últimos textos publicados no saudoso dn jovem

sexta-feira, maio 11, 2007

assim que o tempo passar

assim que o tempo passar sobre nós haverá com certeza coisas que se perderão, palavras a morrer nos lábios ou gritos sufocados na garganta. assim que este tempo passar. as minhas mãos já não serão uma extensão das tuas e os meus olhos não procurarão, no céu, a tua estrela. assim que o tempo passar sobre nós saberei que te foste embora. que partiste sem volta. sem abraços desta vez, promete. porque o tempo não pode passar por nós se ainda vislumbrar no teu abraço a vontade de me agarrar. para sempre. assim não nos conseguiremos despedir nunca. e precisamos disso para voltar a viver. para podermos ser dos outros. para que o tempo passe por nós e nos apague. leve o resto.


não me abraçes. nunca mais.

terça-feira, maio 01, 2007

pormenores de um dia

estás sentada à minha frente e desenrolas uma história. a tua história. entre a dúvida se devo sorrir ou deixar que a lágrima teimosa desça sobre mim, paro apenas. sustenho a respiração enquanto suspendo o mundo e ouço-te. mulher agora. miúda há tempos atrás porque não te vi crescer. e no entanto estás aqui frente a mim a desenrolar uma história cheia de gritos que se cristalizaram dentro de ti, cheia feridas invisiveis que os outros teimam em não reparar, cheia de esconderijos secretos, os quais te permitiram sempre fugir. até hoje. porque me contas finalmente a tua história. de silêncios que se queriam, em algum momento, gritos. de sorrisos que foram máscaras de lágrimas, de palavras que se atentamente lidas eram pedidos de socorro. és jovem e forte. como são todos aqueles que acreditam no amanhã que ainda está por construir. como são todos aqueles que amam apesar de...
sou a tua ouvinte passiva porque me pediste. pagaste à recepcionista o preço da consulta. tiveste de começar a telefonar para casa das pessoas, a tentares vender a banha da cobra, para poderes falar. para eu te poder ouvir. devia ser de graça ouvir-te, penso. ninguém deveria ter de pagar para poder gritar tudo o que se acumula. tu pagaste. e agora estás aqui. eu de frente para a história. a tua.
calas-te. apetece-me pegar na tua mão e acreditar contigo. como tu acreditas apesar de tanta coisa, amar como tu amas apesar de...
os ponteiros do relógio marcam o fim. não sei ainda se voltas. ou se a tua história voltará contigo.